A tarde da quinta-feira, dia 22 de novembro de 2012, seguia lenta em Brasília quando Joaquim Benedito Barbosa Gomes – negro, filho de uma faxineira e de um pedreiro, relator do julgamento mais difícil da história republicana do Brasil – carregou seu corpo, e tudo o que ele representa, para o púlpito do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de modo a tomar posse como 55o presidente da corte. “Prometo cumprir os deveres do cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, em conformidade com as leis”, afirmou Joaquim, diante da mãe, dona Benedita, e dos demais – do poder, das celebridades, das câmeras. Foi o evento do ano em Brasília. A capital celebrou com entusiasmo a posse do primeiro presidente negro no STF. Estavam lá os atores Lázaro Ramos e Regina Casé, os músicos Djavan e Martinho da Vila, o piloto Nelson Piquet, o ex-jogador Romário… Estava lá a presidente Dilma Rousseff, mais em corpo do que em espírito, conforme se depreendeu de seu esforço em não sorrir – sob hipótese alguma – nas duas horas de cerimônia. Estavam lá cerca de 340 almas. Estavam lá, em meio aos cliques e beija-mãos, para o Joaquim que assumiu, o símbolo, o orgulho e, para alguns, o parente distante, o colega ocasional. Não estavam lá para o Joaquim do dia seguinte. Este, quer por opção, quer pelo gênio difícil, estava só – e continuará só. Joaquim comandará o Judiciário sem amigos. Ao menos sem os amigos de que precisará: os amigos políticos.
A presidência do Supremo é, antes de tudo, um cargo político. Como presidente, Joaquim terá de se relacionar com os chefes do Executivo e do Legislativo, com juízes, com burocratas do Judiciário, com advogados, com jornalistas. Goste ou não – e Joaquim não gosta nada dessa tarefa. Nos últimos anos, já como ministro do STF, afastando constantemente os outros, Joaquim pareceu confundir a necessária postura independente do juiz com uma mais que ocasional resistência aos outros – resistência que se manifestou no modo colérico como reagiu quando contrariado pelos colegas ou nas aproximações de advogados e políticos. Agora, porém, Joaquim é um líder. E um líder político não lidera apenas pelo bom exemplo. Lidera pelas relações pessoais que cria e mantém, precisamente com quem pode ajudá-lo no exercício da liderança.
Exercer essa missão política sem se conspurcar e, ainda assim, com eficiência, é difícil. Ainda mais porque, para chegar à posição de exercê-la, Joaquim, como qualquer outro, precisou ser também político. Naquela tarde de quinta-feira, em seu discurso de posse, ele disse: “É preciso reforçar a independência do juiz. Afastá-lo, desde o ingresso na carreira, das múltiplas e nocivas influências que podem paulatinamente minar-lhe a independência. Essas más influências podem se manifestar tanto a partir da própria hierarquia interna a que o jovem juiz se vê submetido quanto dos laços políticos de que ele pode às vezes tornar-se tributário na natural e humana busca por ascensão funcional e profissional”. E prosseguiu: “O juiz, bem como os membros de outras carreiras importantes do Estado, deve saber de antemão quais são suas reais perspectivas de progressão. E não buscar obtê-las por meio da aproximação ao poder político do momento”.
A mensagem | |
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Para o país
A ascensão de Joaquim Barbosa é um triunfo do mérito e do valor da educação
Para os políticos
O novo presidente do STF tem um temperamento avesso à conciliação |
Foi um sermão inóspito a Brasília, onde amizades, especialmente as políticas, estão embutidas no cimento que ergueu e sustenta a cidade. Joaquim não mantém, ou preferiu esquecer agora, algumas das relações mais profícuas que pôde usufruir. Quando trabalhava no Senado, na década de 1970, foi colega de Agaciel Maia, que viria a ser diretor-geral da Casa anos depois – e sairia no bojo do escândalo dos atos secretos, em que parentes de senadores eram contratados sob os panos. Quando funcionários do Senado, Joaquim e Agaciel eram datilógrafos e jogavam bola juntos. Quando voltou a Brasília para ser ministro do Supremo, Joaquim chegou a frequentar as peladas na casa de Agaciel. Hoje não aparece mais lá.
Outra amizade que se desfez foi com o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Como ÉPOCA relatou na edição 751, de 8 de outubro, foi Kakay quem fez a ponte, a pedido de Joaquim, entre ele e José Dirceu, então todo-poderoso no Poder ao lado, o Executivo – a “aproximação com o poder político do momento”. Queria ajuda para confirmar sua indicação ao STF. Na conversa protocolar no andar de cima do restaurante Piantella, Dirceu respondeu que o currículo de Joaquim teria de falar por si. E que, justamente como Joaquim em seu discurso da quinta-feira, era contra esse sistema em que um ministro do Judiciário tinha de pedir apoio a um ministro do Executivo para ser indicado. Dirceu confessara antes ao amigo Kakay que seu desconforto era, inclusive, porque, em tese, ele próprio poderia vir a ser julgado pelo ministro que ajudasse a nomear. Dirceu ajudou Joaquim. E a recíproca não foi verdadeira.
Nem mesmo entre os ministros do Supremo Joaquim tem amizades. Pelo contrário. Ali pululam desafetos. É com eles, entretanto, que Joaquim exercerá o poder que acaba de receber: nos debates em plenário, nas decisões técnicas e na diplomacia. Os desafetos foram conquistados ao sabor das altercações nos julgamentos. Com eles, vieram as mágoas – dos ministros, que recebiam a rispidez de Joaquim, e, fora do Supremo, de quem não tinha nem sequer a chance de conversar com ele, caso de advogados, juízes e funcionários. Em alguns casos, a mágoa virou temor, temor de que, dependendo de quem você seja, diálogo não será uma possibilidade com o presidente Joaquim Barbosa.
São sentimentos que renderam episódios traumáticos para a corte. Um deles aconteceu em abril de 2009, quando Joaquim discutia com o ministro Gilmar Mendes, então presidente do STF, uma ação julgada três anos antes. Depois de Joaquim acusar Gilmar de não ser transparente na decisão e de uma réplica de Gilmar dizendo que Joaquim “faltava” às sessões, quando, na verdade, estava de licença médica por causa dos já crônicos problemas na coluna, Joaquim disse: “Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com os seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar”. A peleja rendeu três anos de distância entre os dois.
Neste ano, Joaquim voltou a expor sua verve belicosa. Desta vez, com o então presidente do STF, Cezar Peluso. Em seus últimos dias na corte, Peluso falou do “temperamento difícil” de Joaquim ao lidar com advogados e colegas. “Ele é uma pessoa insegura. Tenho a impressão que ele tem medo de ser qualificado como arrogante, como alguém que foi para o Supremo não pelos méritos, que ele tem, mas pela cor”, disse Peluso. A resposta de Joaquim veio violenta. Brega, caipira e tirânico foram os adjetivos da réplica. Sobre sua insegurança e seu temperamento de faíscas, Joaquim afirmou: “Alguns brasileiros não negros se acham no direito de tomar certas liberdades com negros. Você já percebeu que eu não permito isso, né?”. Quando Marco Aurélio Mello, um de seus sparrings preferenciais, questionou se Joaquim teria condição de presidir a corte, por causa de seus destemperos, a reação veio por nota à imprensa. “Ao contrário de quem me ofende momentaneamente, jamais me vali ou tirei proveito de relações de natureza familiar”, diz o comunicado. Marco Aurélio é primo distante de Fernando Collor de Mello e foi por ele indicado ao STF.
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